Com a entrada em vigor da Lei nº 14.285, em 29 de dezembro de 2021, que trouxe alterações significativas ao Código Florestal e à Lei de Parcelamento do Solo Urbano, muitos Municípios procuraram o CINCATARINA para se informar sobre as consequências práticas destas mudanças legislativas.
Para responder aos questionamentos recebidos, nossa equipe multidisciplinar estudou o assunto e elaborou as seguintes explicações, que podem servir de orientação geral aos Municípios consorciados.
Mudanças no Código Florestal (Lei nº 12.651/2012):
Conforme artigo 4º, inciso I do Código Florestal, ao longo dos cursos d´água naturais, tanto em áreas urbanas como rurais, devem ser observadas faixas de preservação permanente, cujas medidas poderão variar de 30 a 500 metros, conforme a largura do curso d´água.
A Lei nº 14.285/2021 acrescentou o § 10 ao artigo 4º, permitindo que o Município defina faixas de preservação permanente em medidas diferentes daquelas estabelecidas no inciso I, quando localizadas em áreas urbanas consolidadas. Vejamos:
“Art. 4º (…).
§ 10. Em áreas urbanas consolidadas, ouvidos os conselhos estaduais, municipais ou distrital de meio ambiente, lei municipal ou distrital poderá definir faixas marginais distintas daquelas estabelecidas no inciso I do caput deste artigo, com regras que estabeleçam:
I – a não ocupação de áreas com risco de desastres;
II – a observância das diretrizes do plano de recursos hídricos, do plano de bacia, do plano de drenagem ou do plano de saneamento básico, se houver; e
III – a previsão de que as atividades ou os empreendimentos a serem instalados nas áreas de preservação permanente urbanas devem observar os casos de utilidade pública, de interesse social ou de baixo impacto ambiental fixados nesta Lei.”
Compreende-se que, agora, o Município poderá estabelecer uma APP de medida distinta daquela prevista no Código Florestal, desde que observe os seguintes requisitos: (a) somente em “área urbana consolidada”; (b) mediante consulta ao conselho de meio ambiente competente; (c) através de lei.
Quanto ao primeiro requisito, observa-se que os critérios para caracterização da “área urbana consolidada” não estavam previstos no Código Florestal, de modo que os Municípios se baseavam no artigo 2º, inciso V, da Resolução nº 302 do CONAMA para identificá-la. Porém, a Lei nº 14.285/2021 alterou o inciso XXVI do artigo 3º do Código Florestal, trazendo os critérios para identificação da “área urbana consolidada”, como segue:
"Art. 3º (...)
XXVI - área urbana consolidada: aquela que atende aos seguintes critérios:
a) estar incluída no perímetro urbano ou em zona urbana pelo plano diretor ou por lei municipal específica;
b) dispor de sistema viário implantado;
c) estar organizada em quadras e lotes predominantemente edificados;
d) apresentar uso predominantemente urbano, caracterizado pela existência de edificações residenciais, comerciais, industriais, institucionais, mistas ou direcionadas à prestação de serviços;
e) dispor de, no mínimo, 2 (dois) dos seguintes equipamentos de infraestrutura urbana implantados:
1. drenagem de águas pluviais;
2. esgotamento sanitário;
3. abastecimento de água potável;
4. distribuição de energia elétrica e iluminação pública; e
5. limpeza urbana, coleta e manejo de resíduos sólidos".
A Lei passou a exigir mais critérios urbanísticos e menos serviços para a caracterização da área urbana consolidada. Por outro lado, a Lei deixou certa margem de subjetividade, quando fala em “predominantemente edificados” e “predominantemente urbanos”, sem estabelecer uma medida para essa predominância.
Uma vez definida a área urbana consolidada, o conselho de meio ambiente competente deverá ser ouvido sobre as metragens da APP que poderiam ser aplicadas. Após, o Município poderá, então, editar uma lei, prevendo medidas de APP distintas daquelas previstas no Código Florestal.
Porém, os incisos I a III do § 10 do artigo 4º trazem alguns limites para esta Lei municipal. Ela deverá proibir a ocupação em áreas com risco de desastres e somente poderá permitir a ocupação em APP's urbanas em casos de utilidade pública, de interesse social ou de baixo impacto ambiental, que são as hipóteses descritas nos incisos VIII, IX e X, do artigo 3º do Código Florestal. A Lei também precisará estar de acordo com as diretrizes do plano de recursos hídricos, do plano de bacia, do plano de drenagem ou do plano de saneamento básico, se houver.
Ou seja, a partir de agora, o Município poderá, através de Lei e depois de ouvido o conselho de meio ambiente competente, estabelecer medidas distintas para as APP's localizadas em “área urbana consolidada”. No entanto, esta Lei deverá proibir a ocupação em áreas com risco de desastres e permitir a ocupação em APP's urbanas somente nos casos de utilidade pública, de interesse social ou de baixo impacto ambiental. A Lei municipal deverá, ainda, estar em consonância com outros planos porventura existentes.
Mudanças na Lei de Parcelamento do Solo Urbano (Lei nº 6.766/76):
A Lei nº 14.285/2021 incluiu o inciso III-B ao artigo 4º da Lei de Parcelamento do Solo Urbano, estabelecendo que a faixa não-edificável ao longo das águas correntes e dormentes deverá ser prevista em lei municipal, sendo obrigatório reservá-la para cada trecho de margem, conforme indicada em diagnóstico socioambiental.
Portanto, a faixa não-edificável que deverá ser reservada ao longo das águas correntes e dormentes dependerá: (i) da realização de um diagnóstico socioambiental e (ii) da previsão em lei municipal.
Salvo engano, não há em lei uma descrição do que seja o “diagnóstico socioambiental”.
No Estado de Santa Catarina, essa nomenclatura foi utilizada pelo Ministério Público no Parecer nº 34/2014, para conceituar o estudo voltado à identificação de APP's localizadas em área urbana consolidada e ocupadas irregularmente, com a finalidade de promover a regularização fundiária urbana. Porém, este estudo teve sua base legal esvaziada com o advento da Lei nº 13.465/2017, de modo que, atualmente, o MPSC não o exige mais. [1]
Muitos Municípios têm procurado o CINCATARINA para buscar esclarecimentos sobre o que seria esse “diagnóstico socioambiental”, acreditando que se trata do mesmo estudo que o MPSC exigia e que muitos Municípios efetivamente realizaram. Em alguns Municípios, esse estudo ainda está em andamento.
Contudo, este “diagnóstico socioambiental” que a Lei de Parcelamento do Solo agora exige é figura nova, pois, tem por finalidade indicar a faixa não-edificável ao longo das águas correntes e dormentes, não tendo relação com as APP's situadas em área urbana consolidada.
De fato, a faixa não-edificável não se confunde com a APP, pois, se trata de uma área ao longo de rodovias, ferrovias ou cursos d´água sobre a qual o Poder Público não permite construir. Trata-se de uma restrição administrativa, com fundamento na Lei nº 6.766/76. Diferentemente, a APP é regida pelo Código Florestal e nela é permitido construir, nas hipóteses de utilidade pública, de interesse social ou de baixo impacto ambiental.
Portanto, de acordo com a nova Lei, o Município deverá reservar uma faixa não-edificável em cada trecho ao longo das águas correntes e dormentes. A fim de indicar essas faixas, precisará realizar um diagnóstico socioambiental. Depois, estabelecerá as faixas não-edificáveis através de lei.
Segundo consta no inciso III-B, esta lei municipal seria aquela que “aprovar o instrumento de planejamento territorial e que definir e regulamentar a largura das faixas marginais de cursos d´água naturais em área urbana consolidada, nos termos da Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012”.
Pode-se entender que o dispositivo fala da Lei do Plano Diretor. Porém, também é possível conjecturar que o Município possa editar uma lei específica, na qual indicará a faixa não-edificável ao longo das águas correntes e dormentes e, também, definirá a largura das APP's localizadas em área urbana consolidada.
Considerações finais
A Lei nº 14.285/2021 modificou significativamente as regras aplicáveis às APP's localizadas em área urbana consolidada e às faixas não-edificáveis ao longo das águas correntes e dormentes.
Considerando que as alterações legislativas são recentes, ainda pairam dúvidas sobre o diagnóstico socioambiental agora previsto na Lei de Parcelamento do Solo, o qual difere do diagnóstico socioambiental das áreas de preservação permanente antes exigido pelo MPSC. Os reflexos destas alterações nos procedimentos para regularização fundiária também são fonte de questionamentos.
Apesar dessas incertezas, fica claro que tais modificações reforçaram a competência dos Municípios para legislar, de modo a suplementar a legislação federal e a estadual, no que couber, atendendo ao interesse local, conforme prevê o artigo 30, incisos I e II, da Constituição Federal.
O CINCATARINA, através de sua equipe multidisciplinar, está em permanente estudo do tema, a fim de sanar as dúvidas e propor aos Municípios as soluções necessárias, buscando a alternativa que lhes seja mais eficiente, menos onerosa e que também lhes ofereça a necessária segurança jurídica, sempre de acordo com o princípio da legalidade.
[1] Atualmente, o MPSC adota, para fins de regularização fundiária urbana, o denominado “ETSA – Estudo Sócioambiental”, o qual engloba os estudos técnicos descritos no art. 11, § 2º e art. 35, III, VII e VIII, da Lei 13465/17, segundo consta no Parecer nº 1/2021.